Dando continuidade aos estudos do semestre sobre memória, tempo e cultura negra, no encontro de ontem (04/09) o grupo se debruçou na leitura do ensaio “Vênus em dois atos”, da pesquisadora e escritora Saidiya Hartman, apresentado por Maíra Mello.
A autora discorre acerca da fabulação crítica, uma proposta metodológica de pesquisa em diálogo com a escrita criativa, a fim de questionar o jogo de invisibilização da mulher negra nos arquivos dominantes da História. Para tanto, Hartman encontra na construção narrativa da fábula uma possibilidade de ressignificar a trajetória das Vênus, as meninas e mulheres traficadas no período da escravidão. No destino de cada uma delas, perpassa violências físicas (corporais) e simbólicas (sociais).
Porém, a fabulação crítica tem por intenção não elidir tais episódios na vida das mulheres escravizadas; pelo contrário, imaginar o que não foi contado nos arquivos: seus nomes, seus afetos e suas existências. Elas, e tantas outras mulheres negras, se tornam personagens reais na produção da autora, cujo método de investigação está distante da suposta neutralidade científica ou da dramatização ficcional.
Após a leitura, refletimos sobre a construção da pesquisa científica e da prática artística num exercício de criar outros imaginários além da reprodução da violência, preenchendo lacunas históricas e sociais através do questionamento.
Como bem pontuou nossa líder, Fernanda Carrera, ainda que se tenha a liberdade de fabular, o arquivo permanece inseparável do jogo de poder, já que ali foi materializado todo o discurso colonial sobre o corpo da mulher negra: domínio sexual, violência e mprte a um corpo sem nome, ou seja, uma vida sem história. Dessa maneira, o trabalho de Hartman ao criar uma “narrativa” para as Vênus está longe de ser uma fabulação pelo simples gosto de imaginar; trata-se, antes, de uma crítica à História escrita sob o ponto de vista do dominador, com a finalidade de reconstruir o passado dolorido para ressignificá-lo, com e contra o arquivo.
Pensando sobre outras formas de reconstruir memórias de sofrimento sem fetichizar a violência, Laura Rosa compartilhou o trabalho da roteirista Eliana Alves Cruz, uma das responsáveis pela criação da recém-lançada série Capoeiras (Disney Plus, 2025), que visa estratégias estéticas para contar novas histórias representando a juventude negra, deixando de lado o enquadramento arquivístico e da mídia hegemônica de crime, violência e subalternização. Maíra Mello e Rosane Romão citaram as contribuições de autoras negras para a literatura nacional contemporânea, a exemplo das brilhantes Conceição Evaristo — com seu método de Escrevivências, encontrado em Ponciá Vicêncio — e Ana Maria Gonçalves — primeira mulher negra a integrar a Academia Brasileira de Letras (ABL), autora de Um defeito de cor.
Esse encontro foi fundamental para as próximas leituras do LIDD! Fabular de maneira crítica com Saidiya Hartman é uma forma de reconhecer histórias ancestrais esquecidas e apagadas, de pensar produzindo imaginários belos, rebeldes e resistentes. Também, de nos reconhecer enquanto sujeitos negros, ontem e hoje.
Espero que tenha gostado dessa resenha. Semana que vem tem mais!
“Vênus em dois atos” foi traduzido e publicado em: <https://revistaecopos.eco.ufrj.br/eco_pos/article/view/27640>.