A #liddica de hoje é o longa-metragem De Cierta Manera (1977), o único da carreira de Sara Gómez (1942-1974), a primeira mulher negra a dirigir um filme de ficção em Cuba. Abordando o período Pós-Revolução (1959), a película retrata as comunidades afro-cubanas dos bairros erradicados de Havana, por meio do uso de imagens documentais e situações dramáticas ficcionais ambientadas naqueles territórios. Desse modo, ganham projeção temas recorrentes no contexto sociocultural do país: colonialismo, racismo, desigualdades econômicas, gentrificação etc.
Na trama, o casal inter-racial Yolanda (Yolanda Cuéllar) e Mario (Mario Balmaseda) vive um amor atravessado pelas diferenças das próprias vivências e visões de mundo. Ela, branca de classe média, é professora recém-chegada à escola primária da comunidade e possui inclinações revolucionárias; ele, negro de classe baixa, trabalha como operário na construção de casas por ali e é próximo do conservadorismo. O relacionamento desses personagens mobiliza questões para a narrativa, sobretudo de gênero, tendo em vista a perspectiva feminista presente tanto na direção como no roteiro assinado por Goméz.
A crítica sobre o patriarcado/machismo na sociedade cubana aparece sub-repticiamente nas cenas e diálogos com Mario. Ele, que almeja ingressar em uma sociedade religiosa abacuá (historicamente restrita aos homens), serve como retrato da masculinidade negra latina nos idos do século passado, calcada nos supostos ideários de autoridade, virilidade e conquista sexual esperados pela performatividade do gênero masculino. Para além disso, observa-se certa solidariedade entre homens como parte da ética dentro e fora do ambiente de trabalho, e quando é rompida (a exemplo da sequência na qual Mario denuncia as mentiras do amigo), os sujeitos questionam a própria masculinidade por terem agido “como uma mulher”.
O cinema revolucionário de Sara Goméz oferece uma narrativa sensível para os assuntos polêmicos de raça, sexo e classe, algo sublinhado por bell hooks na introdução de seu Cinema Vivido (Ed. Elefante, 2023) ao versar sobre o papel pedagógico dos filmes na compreensão de acontecimentos. De Cierta Manera serve como registro do masculino na América Latina, além dos ecos do machismo nas estruturas sociais. Mais do que revisitar o passado, esse filme híbrido, na interseção entre arquivo e ficção, convida o observador a pensar de que forma a memória e a arte do “olhar opositor” (hooks, 2023) das mulheres negras suscitam interrogações para o presente, marcado por leituras cada vez mais confrontadoras da realidade social.
O filme legendado em português se encontra disponível no YouTube: <https://youtube/Vm9P4OWXsEo?feature=shared>.
Espero que tenham gostado desta resenha e continuem ligados para as próximas dicas!
Referências
hooks, bell. Cinema vivido: raça, sexo e classe nas telas. São Paulo: Ed. Elefante, 2023.