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Ver além do arquivo: a obra de José Ezelino da Costa

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Diante do arquivo

Estar diante do arquivo é estar diante de uma memória materializada, capaz de resistir às fronteiras do tempo historiográfico. Também, é estar diante dos enquadramentos de um jogo de poder, como propõe Saidiya Hartman em “Vênus em dois atos” (2020).

Isso se faz evidente na semelhança da palavra ao conceito grego arkhé, que “lembremos, designa ao mesmo tempo o começo e o comando” (Derrida, 2001, p. 11), tendo um sentido de princípio e de lei, ordem social. A origem de “arquivo” tem raízes grega (arkheîon) e latina (archivum), cujos significados apresentam um sentido comum: local onde documentos são guardados, protegidos por determinada instituição social (p.ex, Arquivo Nacional).

Nas culturas que prezam pela memória transferida às materialidades, houve uma domiciliação do arquivo, encontrando nos lares “morada, este lugar onde” os objetos ‘se de-moravam”(Derrida, p.3) a sofrer desgaste. Exemplo disso são os álbuns de família, passados de geração e geração.

Neste texto, exploramos a relação entre arquivo e os registros íntimos do artista visual José Ezelino da Costa, pensando forma outra de visibilidade aos negros.

Um olhar auto-representacional

José Ezelino da Costa

José Ezelino da Costa foi um artista negro potiguar nascido no ano de 1889, “em pleno sertão do Rio
Grande do Norte […] nos arredores de Caicó, uma cidade de sociedade predominantemente
branca”; era “filho de Bertuleza Maria da Conceição, uma ex-escrava” e “foi o primeiro fotógrafo negro do sertão do Seridó” (Almeida, 2019, p.7).

Seu ofício teria iniciado nos primeiros idos anos do século XX, quando fazia registros para abastadas famílias e autoridades da sociedade caicoense, notadamente “imagens de estúdios embelezadas com
panos e mobiliário que adornavam os retratos” (Jaguaribe; Gómez López, 2022, p.3). Além dos álbuns burgueses, as lentes de Ezelino capturaram também paisagens e grupos locais, a exemplo de trabalhadores na construção do açude de Itans, em Caicó.

Ezelino foi o autor dos retratos de estúdio que compuseram o álbum da própria família: mãe, irmãs e sobrinhos passaram a ser “modelos fotográficos”. Conforme Almeida (2019), pesquisadora sobre os trabalhos do artista, tal obra se diferencia pela “forma como ele fotografou os membros de sua família, […] quando não era comum encontrar fotos de negros ou de descendentes que não estivessem retratados em atividades de trabalhos subalternos, no campo; ou nas grandes capitais” (p. 88).

O fotógrafo potiguar escolheu representar a si, e aos seus, de modo similar àquele encontrado nas imagens aristocratas e burguesas, em contraste com a esperada representação do negro à época — mesmo alforriados, os sujeitos racializados continuaram sendo submetidos aos olhares coloniais.

Por mais que Ezelino seguisse o cânone representacional (eurobranco) em voga no Brasil pós-Abolição, seu pioneirismo está no ato de imaginar um novo cenário para a estética negra, através de vestuário, poses e móveis. As imagens abaixo expressam o estilo empregado por Ezelino, de semelhança evidente aos portraits europeus.

Maria de Lourdes (sobrinha de Ezelino)

Anna das Dores (sobrinha de Ezelino)

Meninas sem nome.

Embora não possamos afirmar as intenções políticas por trás da prática imagética deste “moderno” do Caicó, seus registros contribuem às reflexões contemporâneas sobre arquivo, memória, ancestralidade e representação da negritude, reforçando uma identidade social que circulava por espaços de poder majoritariamente de elite.

A fotografia de Ezelino serve como registro dos legados pós-coloniais nas cidades periféricas brasileiras, nas quais as diferenças de raça e classe produziram (re)apropriações dos repertórios artísticos. Sobretudo, contribui para os debates contemporâneos sobre formas outras de enxergar os sujeitos negros no decorrer do tempo passado, para além dos estereótipos limitantes.

Referências

ALMEIDA, Angela. Quando a pele incendeia a memória: nasce um fotógrafo no sertão do século
XIX
. Natal: EDUFRN, 2019. Disponível em: <https://repositorio.ufrn.br/jspui/handle/123456789/27280>. Acesso em: 4 de Jul. 2024.

ARQUIVO. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2025. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Arquivo&oldid=70990400>. Acesso em: 5 out. 2025.

DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Tradução de Claudia de Moraes Rego. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2001.

HARTMAN, Saidiya. Vênus em dois atos. Revista Eco-Pós23(3), 12–33. https://doi.org/10.29146/eco-pos.v23i3.27640

JAGUARIBE, Beatriz; LÓPEZ, David Gómez. “Retratos de província: fotografias de estúdio, invenções do eu e arquivos de memória”. Galáxia (São Paulo, online), ISSN: 1982-2553. Publicação Contínua.
http://dx.doi.org/10.1590/1982-2553202257475. v. 47, 2022, pp.1-30.

Imagens

https://es.123rf.com/photo_83512073_a-rep%C3%BAblica-da-checoslov%C3%A1quia-circa-de-1920-vintage-foto-mostra-jovem-usa-melhor-vestido-de-domingo-.html https://sombradaoiticica.wordpress.com/2017/10/02/fotos-de-jose-ezelino-1889-1952/

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