No cenário do entretenimento, os fãs exercem um papel fundamental no fortalecimento da carreira de artistas, atletas e outros profissionais influentes, sendo responsáveis por criar comunidades, divulgar trabalhos e apoiar seus ídolos. No entanto, é necessário questionar até que ponto essa relação de admiração pode também mascarar práticas racistas. Apesar de muitas vezes disfarçado sob a premissa de “entretenimento” ou “opiniões”, o racismo como performance de fãs — praticado especialmente no ambiente digital — é uma realidade que precisa ser mais discutida em nossa sociedade.
O conceito de Racismo Recreativo, abordado pelo jurista Adilson Moreira, refere-se à normalização de práticas racistas disfarçadas de humor ou entretenimento. Esse fenômeno legitima a exclusão e inferiorização de pessoas negras, muitas vezes justificando comentários pejorativos como “apenas uma piada”. Moreira ainda enfatiza que essa modalidade de racismo é especialmente prejudicial, uma vez que passa muitas vezes despercebida, tornando-a mais difícil de ser combatida. Na cultura de fãs, essa dinâmica é facilmente identificável, como quando críticas e insultos a traços fenotípicos de artistas ou atletas negros são feitas de maneira leviana, como por exemplo, um “simples” meme.que se reverbera entre os fandoms — como são chamadas as comunidades de fãs —, mas que pode revelar questões profundas que se camuflam dentre as diversas camadas da estrutura social preconceituosa que vivenciamos no Brasil.
O ciberespaço, com sua característica descentralizada e de baixa fiscalização, acaba sendo um terreno fértil para a proliferação dessas atitudes, onde o anonimato e a falta de regulação tornam a discriminação racial ainda mais intensa e perigosa. Luís Valério Trindade, em sua obra de 2022, aborda como o ódio às pessoas negras é remanescente da escravidão e como isso está escancarado nas redes sociais. Para o intelectual, as redes sociais são, nos dias de hoje, reflexo do sistema estruturalmente racista na qual estamos inseridos socialmente e, devido à falta de uma legislação geral e fiscalização efetiva em relação aos ambientes virtuais, é bastante comum que práticas racistas ainda sigam impunes na internet.
A filósofa Sueli Carneiro contribui para essa discussão ao propor o conceito do Dispositivo de Racialidade, que organiza e perpetua as relações raciais na sociedade, legitimando o racismo de forma institucional e simbólica. Esse dispositivo também atua no campo midiático e nas relações entre fãs e ídolos, naturalizando a desqualificação de corpos racializados. Assim, os discursos racistas de fãs refletem um sistema complexo que determina quem tem o direito de ser admirado ou atacado. E, além disso, os ataques muitas vezes extrapolam o ambiente virtual, como tem acontecido com a cantora Ludmilla e com o jogador de futebol Vinícius Jr, frequentemente alvos de racismo em suas aparições públicas.
É importante salientar que as práticas racistas nas redes sociais são ferramentas poderosas para o boicote às carreiras das pessoas racializadas, especialmente aquelas em ascensão. Personalidades negras, como Ludmilla e Vini Jr, merecem ocupar posições de destaque e reconhecimento quando alcançam esses lugares, e o problema apresentado neste texto evidencia não apenas a necessidade de haver uma revisão das diretrizes das plataformas digitais, mas também a importância de refletir mais criticamente sobre as dinâmicas subjacentes aos discursos que nos atravessam no campo midiático. É crucial reconhecer que a falta de discussão sobre o racismo como performance de fãs na sociedade brasileira facilita a organização da branquitude, perpetuando a segregação racial e de gênero por meio de discursos e comportamentos discriminatórios que, muitas vezes, passam despercebidos nas interações cotidianas.
Diante desse cenário, é fundamental questionar: Fãs podem ser racistas?
A resposta, infelizmente, é sim.
Muitos fãs, mesmo que de maneira inconsciente, legitimam narrativas que inferiorizam pessoas negras, apesar de seu destaque profissional. E, partindo deste ponto, podemos concluir que o fato de ser fã não isenta ninguém de praticar racismo, mesmo que o crime esteja ocorrendo na internet.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
CARNEIRO, Sueli. Dispositivo de racialidade: A construção do outro como não ser como fundamento do ser. Editora Zahar, São Paulo, 2023
TRINDADE, Luiz Valério. Discurso de ódio nas redes sociais. São Paulo: Editora Atlas, 2022.
MOREIRA, A. Racismo Recreativo. 1ª Edição. Editora Polén Livros. Abril, 2019.